sábado, 13 de setembro de 2008

Pedido de Indenização à Comissão de Anistia-PE

EXMO. SR. SECRETÁRIO DA JUSTIÇA E CIDADANIA
DO ESTADO DE PERNAMBUCO – OUVIDORIA GERAL

“ Metida tenho a mão na consciência
e não falo senão verdades puras
que me ditou a viva experiência”.
(Luís de Camões)

“Não caluniemos o nosso fascismo tubinambá”
(Graciliano Ramo, em Memórias do Cárcere)

“...Estão impressos na nossa lembrança os corpos dos companheiros
massacrados e recolhemos na carne a tatuagem sombria das torturas.
Somos sobreviventes da tortura e insistimos em ser depoentes.”
(Doc. dos presos políticos de Itamaracá ao Ministro da Justiça, em 09/02/1979)

“Negaram tudo que fizeram.
Fizeram tudo que negaram.
E nada têm a declarar”.
(José Fortuna de Mel, em Versos Tortos)

Marcelo Mário de Melo, jornalista, brasileiro, casado, RG, CPF, residente à ..., venho requerer o meu enquadramento nos termos da Lei No 11.773, de 23/05/2000, regulamentada pelo Decreto No 22.597, de 29/08/2000, pelas razões expostas a seguir.

1 –
Antecedentes – Em abril de 1961, com 17 anos incompletos, integrei-me à base do Partido Comunista Brasileiro – PCB no Colégio Estadual de Pernambuco, hoje Ginásio Pernambucano. Em 30 de agosto do mesmo ano tive a primeira prisão. Cercado por policiais do DOPS, fui entregue ao comando da 2a Companhia de Guardas do Exército, onde permaneci um dia detido, pela atuação na Campanha da Legalidade, em defesa da posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, depois da renúncia do presidente Jânio Quadros. Naquela ocasião, o governador de Pernambuco, Cid Sampaio, aliado aos golpistas, colocou a polícia ao lado das forças armadas, reprimindo manifestações, invadindo sindicatos, prendendo comunistas e líderes populares e exercendo censura sobre a imprensa. No dia 1o de abril de 1964 participei da passeata em que foram metralhados os estudantes Jonas Augusto, da base do Colégio Estadual, e Ivan Aguiar, jovem comunista com atuação em Palmares, que estava cursando o primeiro ano na Escola de Engenharia da então Universidade Federal do Recife. Além deles, há informações de que também foram mortos e nunca identificados, uma funcionária da loja de roupa masculina Remilet, atingida por um tiro no seu local de trabalho, e um cidadão. Depois do golpe de 1964 atuei na reconstrução do PCB em Pernambuco, fui articulador da dissidência denominada Corrente Revolucionária e da posterior construção do PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário. Foi na condição de dirigente do PCBR que tive a prisão preventiva decretada pela Auditoria da 7a Circunscrição Judiciária Militar, em de 1970 (ANEXOS 03, 12).

2 – Pisão e tortura - Fui preso no dia 09 de março de 1971, no Rio Grande do Norte, com 27 anos incompletos, e libertado no dia 23 de abril de 1979, no Recife, perto de completar 35 anos, passados 8 anos, 43 dias e 19 horas. A prisão se deu às margens da Lagoa do Bonfim, Município de Nísia Floresta-RN, onde me encontrava sozinho, acampado numa palhoça, em área de caça e pesca. Amanhecendo o dia, acordei-me com o cerco formado por um pelotão de homens rastejando, fardados de verde-oliva e armados com fuzis-metralhadoras. Corri para dentro da mata e uma intensa fuzilaria se desencadeou. Na mata cerrada foi impossível progredir mais do que alguns metros e tive que me entregar, sendo imediatamente colocado numa roda e agredido com socos, chutes e empurrões. Depois de algemado, levaram-me para dentro da lagoa e fizeram sessões de afogamento, mergulhando-me alternadamente a cabeça n’água. Em seguida, utilizando como base as estacas fincadas da palhoça destruída, sobre a parte final em forma de ipsilone, improvisaram um pau de arara ao ar livre, onde fui sendo pendurado, enquanto recebia “telefones” nos ouvidos e pauladas nas plantas dos pés. Nas interrupções – o que é um efeito do pau de arara -, era colocado de pé mas não conseguia me sustentar e caia. Olhando o céu daquele ângulo, e em meio ao suplício, ouvi o major Dagoberto, comandante do 16o Regimento de Infantaria do Exército, situado em Natal, gritar: “amarra um nylon nos ovos dele que ele fala!” E vi entre os militares, como espectador, o então prefeito de Nísia Floresta, meu denunciante. Tudo isto deve ter durado em torno de duas horas. Preso sozinho, e ante a sede dos torturadores por novas capturas, inventei um encontro falso para daí a dois dias, como forma de ganhar tempo .(ANEXO 08,)

3 – Fui interrogado na sede da Polícia Federal, ocasião em que pude conhecer vários torturadores e entender um pouco da operação que me prendera. Tratava-se de uma ação do DOI-CODI, que no Rio Grande do Norte tinha a centralização em torno da Polícia Federal, sendo o seu Superintendente o dr.Franklin (nome real). O pelotão fora composto por membros do exército, da marinha, da aeronáutica e da polícia federal, com a operação de cerco comandada pelo exército. Nas sessões do julgamento na Auditoria da 7a Circunscrição Judiciária Militar, no Recife, pude saber dos nomes de alguns torturadores, que figuraram como testemunhas de acusação: Dagoberto Felix Bezerra, Araújo Galvão, Décio Caldas Costa Moreira. (ANEXO 14 )

4 – Fiquei em Natal até o dia 25 de março, em cela do 16o Regimento de Infantaria, sendo constantemente reinquirido no meio da noite, de surpresa, ou mostrado das grades a terceiros, para reconhecimento. Dormia no chão, com uma lata, para satisfazer necessidades fisiológicas, tendo-me sido permitidos dois banhos, no período. Um dia, por iniciativa sádica de um oficial, toda a minha comida foi excessivamente salgada, com a ordem expressa de ter de comer tudo. Nesse período de prisão comecei a apresentar distúrbios de sono: passava quase toda a noite acordado, ou dormindo e acordando, alternadamente.

5 – Tortura na aeronáutica
- De Natal fui transferido, encapuzado, em avião da FAB, para o Esquadrão de Polícia da Aeronáutica, local identificado pelos ruídos dos aviões do Aeroporto Militar, chegando aí no começo da noite do dia 25 de março. Quando me tiraram o capuz, encontrei-me numa sala fechada, algemado com as mãos para trás, diante de inquisidores encapuzados. A partir daí passei 36 horas sendo interrogado, de pé, por torturadores que se revezavam, com intervalos para empurrões, socos e golpes de palmatória por todo o corpo.Um dos torturadores se divertia, especialmente, em apertar as algemas, que ficaram cortando os pulsos, onde restaram feridas. No fim desse interrogatório, colocaram-me as algemas com as mãos para a frente e me deixaram deitar no chão de uma sala com luz apagada, iluminada pelos reflexos vindos da porta aberta. As paredes eram levantadas sobre uma base de tijolos com furos, sendo estes voltados para dentro. Um dos torturadores disse: “ Na sala aí do lado tem um bocado de ratos, que nós vamos soltar por esses buracos, pra te roerem”.O acúmulo das noites mal-dormidas em Natal, somando-se à recente jornada prolongada insone, colocaram-me num estado de exaustão que me levou a acreditar, completamente, na história dos ratos, e a passar um longo período sugestionado, sob tensão, olhando para os buracos dos tijolos, tentando conter o sono. Quando acordei, algumas horas depois, pude ver que tudo se tratara de um blefe e passei a me recriminar por ter acreditado numa história tão fantasiosa. No Esquadrão de Polícia da Aeronáutica vi serem conduzidos para a tortura e ouvi os gritos de dor dos companheiros Carlos Alberto Soares, Alberto Vinícius Melo do Nascimento e Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho (ANEXOS 10,11,12).

6 – Interrogatório torturante -
Quando cheguei ao DOPS, no Recife, no dia 27 de março, estava com interrogatório marcado na Auditoria Militar para o dia 06 de abril. Um ou dois dias antes da audiência fui levado para uma sala onde se encontravam presentes o policial Luis Martins de Miranda, famoso torturador e assassino de presos políticos, o Coronel Câmara, Comandante da Base Aérea, e quatro torturadores do serviço secreto da aeronáutica, com jeito de oficiais. O coronel se retirou e, depois de uma sessão de pancadaria, submeteram-me a um interrogatório nos seguintes termos. Puzeram-me sentado numa cadeira, próxima a uma mesa ou um birô. Um dos oficiais, colocado à frente, à esquerda, fazia as perguntas. Um pouco atrás deste, outro apontava uma arma, fazendo pontaria e movimentos ameaçadores. Outro se postou às minhas costas e aí enfiou e manteve a ponta de uma caneta Bic, enquanto me dava cuteladas nos rins e vociferava ameaças nos meus ouvidos. Um quarto torturador, colocado à minha frente, do lado direito, acendeu um cigarro, esticou o meu antebraço sobre a mesa e dedicou-se com meticulosidade a queimá-lo, de vez em quando dando uma tragada para avivar mais a brasa. O resultado é que compareci à Auditoria Militar com o braço cheio de bolhas e feridas. O Auditor Seixas Telles perguntou o que tinha sido aquilo e respondi: “ queimaduras com ponta de cigarro”. Nada foi registrado a respeito. Na sala de interrogatório se encontravam minha advogada, Mércia Albuquerque, alguns jornalistas, minha irmã, já falecida, Gilda Mércia de Melo, advogados e familiares de outros companheiros, co-réus naquele processo. Nesta ocasião eu me encontrava numa cela do DOPS em companhia de Francisco de Assis Barreto da Rocha Filho, vindo das torturas no Esquadrão de Polícia da Aeronáutica. No DOPS, ouvi o policial Holanda comentar que o auditor havia ligado e “ dado um esporro”, pelo fato de terem me levado à Justiça Militar com o braço todo queimado. Tratava-se de mera preocupação técnica com o jogo das aparências, não havendo nenhum interesse legítimo em registrar um caso vivo de tortura.No DOPS, sob o comando do diretor Redivaldo Acioly, vi serem arrastados para a tortura e ouvi os gritos de dor dos presos políticos Arlindo Felipe da Silva, Áurea Bezerra e José Bezerra - este, com a idade de 16 anos. Nas dependências em que eles estavam sendo torturados foi morto sob tortura, em de 1971, o preso político Odijas Carvalho, sendo os responsáveis principais o dentista Armando Samico, então diretor do DOPS, e o hoje desembargador Aquino de Farias Reis, que funcionou como delegado de plantão durante o período das torturas (ANEXO 15).

7 – Tortura e provas – Na Auditoria da 7a Circunscrição Judiciária Militar os auditores não permitiam a descrição das torturas sofridas pelos presos políticos. No máximo era concedido, com muita insistência, constar no fim do depoimento a referência sumária: “Afirma que sofreu coação física e moral”. Em vários dos meus depoimentos, nos inúmeros processos a que respondi na Auditoria da 7a Região Militar e no que tramitou na 10a RM, em Fortaleza, está presente essa fórmula sintética, segundo documento anexado a este processo. Somente em situações excepcionais havia a possibilidade de documentação acerca de torturas. Foi o caso de Carlos Alberto Soares, conduzido para a Auditoria Militar das câmaras de tortura do Esquadrão de Polícia da Aeronáutica, em estado físico deplorável, para depor num processo em que tinha como co-ré a companheira Nancy Mangabeira Unger, de cidadania norte-americana, sessão em que estava presente o cônsul dos Estados Unidos. Isto lhe deu condições de detalhar as denúncias e obter um laudo comprobatório. Já na fase penitenciária, os presos políticos pernambucanos formularam as suas reivindicações essenciais, considerando as Condições Carcerárias e a Situação Jurídica. Tratando disto, foram encaminhados documentos ao Ministério da Justiça em 09 de fevereiro de 1979, cópias à OAB, à CNBB, ao MDB, à Anistia Internacional, aos movimentos pela anistia ou ligados à luta pelos direitos humanos. Nos documentos, pleiteava-se: “abertura de Inquérito para apurar as nossas denúncias de tortura e assassinato de presos políticos; “ o fim das torturas aos presos comuns e a apuração das denúncias a respeito”. ( ANEXO 26).

8 – Impactos psicológicos - No período em que me encontrava no DOPS, à espera da ida para a Casa de Detenção do Recife, recebi como medicação para dormir o comprimido de nome Kiatrium”, indicado por médico convocado pelo DOPS, cujos nome e origem ignoro. Temendo remoções para novos interrogatórios, em lugar de tomar os comprimidos, passei a estocá-los e escondê-los, pensando em ingeri-los de uma só vez, como uma forma desesperada de fugir a torturas.Com esse temor, ainda mantive os comprimidos escondidos, durante meses, depois que fui transferido para a Casa de Detenção do Recife, num desgastante convívio com fantasmas de tortura e idéias suicidas.

9 – Os aspectos psicológicos, geralmente, são desconsiderados, em face de realidades extremas de brutalidade e terror. Mesmo entre pessoas torturadas, endossando-se já uma lógica de repressão, era comum se ouvir dizer: “fulano só foi torturado psicologicamente”. Mas foi através da instância psicológica que muitos militantes perseguidos, mesmo sem terem sido presos, se desagregaram, quebraram-se por dentro ou se autodestruíram , até mesmo, muito tempo depois da anistia política. Foi o caso do meu irmão, José Fortuna de Melo, que incorporou uma paranóia insuperável a partir das constantes fugas que teve de fazer, denunciado em processo do PCB, abandonando moradias ou vivendo recluso e afastado do convívio da família, dos amigos e companheiros, por anos e anos seguidos. Sendo obrigado a fugir e a se esconder nos tempos da ditadura, continuou se sentindo perseguido pelos agentes da repressão e vivia sempre correndo desses fantasmas. O desfecho foi o salto mortal de um décimo andar, no dia 08 de março de 1996. A crônica dos anos de ditadura ainda não inclui devidamente a legião dos que, sem terem sido presos ou exilados, tiveram atingidas pelas malhas repressivas a sua dinâmica existencial, os seus projetos de vida e as suas instâncias psíquicas. Os versos a seguir, de José Fortuna, recolhidos do seu livro Versos Tortos, referem-se a este aspecto:

Não é um dado
não é um dedo
Não é um dia:
Já são dezesseis anos!
Assim se passaram os 16 anos:
Fiz sessenta mudanças.
Vamos ao ano dois mil?

Não provei a bóia da prisão.
mas fui tão triturado
fiquei tão morto e desaparecido
que hoje não sei
se estou vivo
ou morto-vivo
nessas ruas percorridas
de rastros-sofrimento
vitrines de idéias
de vidas sem rumo.

10 – Restrições e torturas - Na fase penitenciária, tanto na Casa de Detenção do Recife como na Penitenciária Professor Barreto Campelo, em Itamaracá, para onde foram transferidos em outubro de 1973, os presos políticos de Pernambuco viveram um rosário de dificuldades que representavam restrições adicionais sobre o suplício da pena. Essas restrições gerais destacavam nacionalmente a Penitenciária Professor Barreto Campelo como a que oferecia aos presos políticos as piores condições carcerárias e o relacionamento mais tenso com a direção, ao mesmo tempo em que apresentava o maior somatório de penas do país. Tudo isto marcando de modo diferenciado o corpo e a mente de cada um. E ainda havia os casos em que companheiros eram tomados individualmente como alvos da perseguição. Essa realidade forçou os presos políticos pernambucanos a realizar cinco greves de fome por melhores condições de sobrevivência física e psíquica na prisão, sem contar a participação na Greve de Fome Nacional dos Presos Políticos do Brasil pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita. A resposta repressiva a essa resistência dos presos políticos de Itamaracá foi se estabelecer a participação em greve de fome como elemento impeditivo para a concessão de liberdade condicional (ANEXOS 16, 24, 25, 26).

11 - As torturas sobre os presos comuns eram uma norma no sistema penitenciário em Pernambuco, tanto na Casa de Detenção do Recife quanto na Penitenciária Professor Barreto Campelo. E elas funcionavam sobre os presos políticos como elemento de coação psicológica, conforme denunciado a representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de Pernambuco, em visita aos presos políticos realizada em 17 de outubro de 1974. No item 3 do seu Relatório, dizem os representantes da OAB:

“Reiteram, porém, os presos políticos, as suas reclamações contra:
(a) – o espancamento de presos comuns, que importaria em coação
psicológica sobre eles; (b) – os obstáculos ao contacto com advogados
constituídos, aos quais se tem recusado a prerrogativa do art. 89, III,
da Lei no 4.215/63;(c) a necessidade de ser dado defensor aos
sentenciados para que possam eles ter a devida assistência na defesa
de seus direitos carcerários, face não terem advogado constituído e
lhes ser recusado acesso aos advogados do Sistema Penitenciário ...
(d) deficiente assistência médico-dentária e (e) ausência quase completa
de acesso aos assistentes sociais da Penitenciária.”

No item 5, o relatório afirma que
“Os fatos referidos nas letras a, b, c, d e é, supra, não foram
contestados pelas autoridades penitenciárias ...”
(ANEXO 17)

12 –Os presos políticos pernambucanos sempre denunciaram a tortura sobre os presos comuns como uma norma disciplinar presente no cotidiano, havendo momentos em que o sadismo se exacerbava e resultava em cadáveres nas mãos dos torturadores. Isto ocorreu, por exemplo, no dia 21 de setembro de 1976, quando os presos comuns Paulo Fernando da Silva (vulgo Boy), José Ramos da Silva (vulgo Jegue), e os que respondiam pelas alcunhas de Bandeira Dois, Lula Cangaia e Gildo Beiçola, tentando fugir sorrateiramente da cela de castigo e sendo surpreendidos por um guarda, voltaram ao local em que estavam. Contactado, o diretor da Penitenciária, Major PM José Siqueira da Silva, chegou com reforços militares e comandou um processo de torturas que se prolongou por toda a noite,com os presos indefesos sendo atirados às mordidas dos cães, como se não bastassem as agressões dos policiais. Desse espetáculo medieval resultou morto o preso Paulo Fernando da Silva (Boy), sobrevivendo os outros, com sérios ferimentos, ocultos na Penitenciária. O diretor providenciou uma farsa macabra, com o corpo do assassinado colocado na cerca eletrificada e aí permanecendo até o fim da tarde, para inflingir terror à população carcerária. Os presos políticos fizeram um relato detalhado do caso, propondo-se a serem depoentes em inquérito, e solicitaram providências às autoridades responsáveis pelo sistema penitenciário e aos órgãos do poder judiciário, civil e militar, mas obtiveram o silêncio como resposta (ANEXO 23).

13 – Tortura e morte - Em Pernambuco, o fato de um preso político já se encontrar em fase de cumprimento de pena não era uma garantia de que estivesse livre de ser novamente torturado, como era praxe na fase de prisão e inquérito. Tanto é assim que, no dia 1o de abril de 1976, os presos políticos Cláudio de Souza Ribeiro, José Adeildo Ramos, José Emilson Ribeiro e José Calixtrato Cardoso, todos há anos no regime penitenciário, foram retirados da Penitenciária, conduzidos para o Esquadrão de Polícia da Aeronáutica e aí despidos e submetidos a espancamentos, choques elétricos e coações, utilizados como matéria prima para o treinamento de uma nova turma de torturadores. No retorno à Penitenciária ficaram isolados do conjunto durante uma semana, com as grades das celas vedadas por cortinas pretas, somente retornando ao convívio coletivo quando os seus corpos não mais podiam atestar as torturas sofridas. Fatos como estes deixavam os demais presos políticos em estado de tensão e sob ameaça, pois o arbítrio de um diretor como o major José Siqueira, homem de confiança do DOI-CODI, o irracionalismo dos órgãos de repressão e a conivência das autoridades responsáveis pela custódia eram uma permanente porta aberta a expedientes semelhantes. Destino pior do que esses quatro torturados teve o preso político Amaro Luiz de Carvalho (Capivara), assassinado na Casa de Detenção do Recife em 1971, quando estava prestes a ser libertado, através do recurso da liberdade condicional. Encontrado morto numa barraca no pátio do estabelecimento, o cadáver de Capivara foi utilizado numa campanha de difamação contra os presos políticos, acusados em matérias sensacionalistas da imprensa local de terem sido os responsáveis. Como não havia a mínima possibilidade de fazer constar nenhum preso político como indiciado, o inquérito e o processo foram devidamente engavetados. Era diretor da Casa de Detenção do Recife, na época, o coronel-PM Olinto Ferraz. E foi sob suas ordens que a barraca em que se encontrou o corpo de Capivara foi destruída horas depois, impossibilitando o trabalho da polícia técnica (ANEXO 23).

14 – Segregação como castigo – No dia 03 de julho de 1975, numa quinta-feira pela manhã, eu e Luciano de Almeida fomos surpreendidos com a nossa súbita transferência da Penitenciária Professor Barreto Campelo para o Esquadrão de Cavalaria da Polícia Militar de Pernambuco, no bairro do Bongi. Respondemos com uma greve de fome automática, acompanhada pelos companheiros que ficaram, quando conseguiram passar um documento de denúncia na visita do sábado, dia 06. Permanecemos 11 dias e meio em greve e paramos depois de uma negociação direta com o juiz-auditor, de onde resultou a promessa não cumprida de uma solução. Em setembro, outra greve de fome, que durou vinte e cinco dias e meio. Todas as portas se fecharam e permanecemos em regime de castigo por cinco longos meses, numa cela pequena, com apenas dois banhos de sol por semana, sem direito a artesanato nem encontro conjugal e afastados dos demais presos políticos. Essa greve de fome deteve um projeto de separação dos presos políticos pernambucanos, que previa a sua distribuição nas carceragens de diversas unidades das forças armadas. O interesse era quebrar a nossa organização coletiva e fazer cessar o processo de reivindicações e denúncias, objetivo este que não foi atingido. Eu e Luciano só retornamos à Penitenciária perto do fim do ano. Mas como elemento de retaliação foi imposta a segregação dos companheiros Carlos Alberto Soares e Rholine Sonde Cavalcanti, que cumpriam prisão perpétua e foram colocados em local isolado. Somente ao custo de mais duas greves de fome, em 1977 e 1978, eles retornaram ao convívio coletivo. (ANEXOS 18, 19, 20, 21, 22, 27,28, 29, 30, 31)

15 – Perseguição a familiares – Duas companheiras que tive na prisão foram arrastadas para órgãos de repressão e sofreram ameaças, sob a falsa acusação de serem elementos de contato entre eu e o partido político clandestino a que pertencera, o PCBR. As vítimas foram, em 1974, Lylia Guedes, que já cumprira pena de um ano na Colônia Penal do Bom Pastor, e, em 1975, Maria Mírian Gomes, que participava em Recife do Movimento Feminino pela Anistia, foi despida e apalpada. Essas atitudes de interferência direta na minha vida afetiva também expressavam a extensão aos familiares dos suplícios da pena. Sem falar nos primeiros momentos da prisão, em que os presos políticos se encontravam enredados nas malhas da tortura ou da morte, a fase penitenciária não poupou os familiares. Eles foram obrigados a conviver com a via crucis das visitas sacrificantes, obstaculizadas, muitas vezes cortadas, além das provocações e do desrespeito, a começar por uma revista aviltante, que impunha a todos, homens e mulheres, crianças e idosos, ficarem completamente despidos, serem apalpados e assumirem posturas grotescas para serem examinados. (ANEXO 25 )

16 – Processos artificiosos – O julgamento dos presos políticos, em Pernambuco e no Brasil, foi tecido nas câmaras de tortura, tendo policiais torturadores como testemunhas e militares raivosos como jurados, constituindo-se num jogo de cartas marcadas que muitas vezes chegava a exceder os limites previstos na própria Lei de Segurança Nacional e no Código de Processo Penal Militar em vigor. O meu caso é exemplar. Fui condenado irregularmente, duas vezes, no mesmo artigo da LSN e, somando-se outras condenações, resultei com uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão, considerada pequena pelos órgãos de repressão. A solução foi me envolver artificiosamente num processo de ação armada, cuja pena mínima era de 12 anos. Tratou-se de um assalto a banco, realizado em Fortaleza num momento em que eu me encontrava no Recife, fato este confirmado em todos os depoimentos dos co-réus que confirmaram em juízo a sua participação: os que assumiram uma posição de arrependidos da sua militância e aqueles que reafirmaram as suas posições políticas. Em nenhum depoimento constou o meu nome, sequer, em termos de planejamento. Mesmo assim, fui condenado a doze anos de prisão por “autoria intelectual” do assalto, porque essa era a única possibilidade “jurídica” de que dispunham aqueles que desejavam me manter encarcerado a todo custo e não se satisfaziam em me ver condenado a, “apenas”, cinco anos e seis meses de prisão (ANEXOS 09, 13).

17 – Libertação protelada – Resultando condenado a um total de 17 anos e seis meses, numa série de processos, tive uma pena de 12 anos reduzida para 2 anos, a partir da adequação aos tetos da Lei de Segurança Nacional, no ano de 1978. Mas enfrentei um lento e desgastante processo de espera por parte da Auditoria da 7a Circunscrição Judiciária Militar. Foram necessárias denúncias e mobilizações para que o processamento formal da equiparação se ultimasse. Quando o alvará de soltura foi assinado pelo Juiz-Auditor e chegou à direção da Penitenciária Professor Barreto Campelo, no dia 24 de abril de 1979, em torno das 18 horas, houve uma reação irracional do então diretor, o Major da Polícia Militar de Pernambuco, José Siqueira, famigerado perseguidor e torturador, homem de confiança do DOI-CODI, acusado pelos presos políticos como assassino frio de presos comuns indefesos. Ele, simplesmente, não admitia que fosse libertado o primeiro preso político de Pernambuco beneficiado com o recurso da equiparação das penas à nova LSN. Inventou filigranas jurídicas e não reconheceu a validade do Alvará. Horas depois, por imposição do Auditor, teve que aceitar a realidade, mas recusou-se a assinar o documento,o que foi feito pelo seu imediato. O caso teve ampla repercussão na imprensa local. Finalmente, fui solto à meia noite, tendo passado vários meses recluso, com a pena já cumprida, por obra e graça da má-vontade judicial-militar, expressa na procrastinação burocrática. (ANEXOS 31,32,33,34,35 )

18 – Tortura em Pernambuco – A partir de 1964, em Pernambuco, a centralização da tortura se deu em torno do DOPS, ligado à Secretaria Estadual de Segurança Pública, em íntima ligação com as forças armadas e a polícia federal, que também mantinham seus serviços de informação, suas equipes e câmaras de tortura. Devido à tradição do DOPS pernambucano em matéria de repressão política e tortura, a implantação do DOI-CODI no estado se retardou, só se consolidando em meados de 1971. A partir daí, depois de capturados, os presos políticos passaram a ser levados diretamente para o QG no IV exército, sede do DOI-CODI, na Rua do Hospício, no Recife, onde foi montada uma central da “tortura científica”, com carceragem, salas de supliciamento, equipamentos mais requintados e acompanhamento médico permanente para medir a resistência do preso, estabelecer os intervalos nos momentos devidos, evitar mortes não programadas e acionar com mais facilidade os atendimentos de urgência. O funcionamento do centro de torturas em espaço contíguo ao Hospital Geral do Exército, hoje Hospital Geral do Recife, facilitava a integração com a “medicina torturante”. Depois de aí serem torturados, interrogados e mantidos sob sistema de seqüestro, os presos políticos, sem nenhum rigor de tempo, eram transferidos para o DOPS, a fim de que fosse formalizado e remetido à Auditoria Militar o “competente inquérito”. A identificação do espaço em que se localizava o DOI-CODI se tornou possível com a percepção dos sons emitidos pelo carrilhão do relógio da Faculdade de Direito, situada das imediações. Observe-se que, mesmo depois de montado o DOI-CODI em Pernambuco, o DOPS ainda manteve um certo peso, quanto à participação em capturas e torturas.

19 – Os maiores responsáveis - No momento em que o Estado de Pernambuco, através dos seus poderes constituídos, seguindo o exemplo de outros estados brasileiros, assume uma lei objetivando alguma forma de reparação aos que padeceram nas prisões da ditadura imposta ao país partir de 1964, é necessário refletir sobre a responsabilidade política e moral pelos abusos e o terror desencadeados contra cidadãos presos naquele malfadado tempo. A tortura, como instrumento tradicional das classes dominantes brasileiras em todas as épocas, atingiu os escravos, os marinheiros e os presos comuns, voltando-se para os presos políticos em longos e determinados momentos da nossa história. No último período ditatorial, contando com a consultoria e o treinamento patrocinados pela CIA e outros centros internacionais, ela se aprimorou tecnicamente e se generalizou como método de interrogatório, formando um sistema que alcançou o país de norte a sul, com ramificações e estrutura funcional. O Sistema de Torturas envolveu diretamente o alto comando das forças armadas, os ministérios militares, a polícia federal e as polícias estaduais, sendo corporificado nas estruturas do DOI-CODI. Mas ele foi montado e mantido por decisão política, contando com o beneplácito dos governantes e de políticos, civis e militares, operacionalmente distanciados, mas responsáveis pela existência do Sistema, avalistas e articuladores dos disfarces e das artimanhas para encobri-lo, inclusive, tratando realidades indisfarçáveis de tortura que vinham à tona, como pretensos “casos isolados”, ocorridos à revelia das autoridades e sob a responsabilidade exclusiva de escalões inferiores. Muito mais do que os torturadores-executores, que realizavam o trabalho sujo na ponta da malha repressiva, esses homens de colarinho duro, de fala mansa e de mãos limpas, verdadeiros sepulcros caiados, muitos situados hoje nas altas cúpulas da república brasileira e falando de cidadania, são os mais repelentes responsáveis pelo Sistema de Torturas que triturou largas parcelas dos democratas, dos socialistas e dos cidadãos brasileiros de oposição. Sistema de Torturas que, desmontado na esfera da ação política, mantém-se direcionado aos cidadãos - na maioria pretos e pobres - que são recolhidos em distritos policiais ou em penitenciárias.

20 – A respeito de torturas físicas ou psicológicas, poderia citar o dito popular: “pancadas dadas e palavras ditas, não há quem tire”. Mas recorro à imagem elaborada pelo preso político pernambucano Carlos Alberto Soares acerca de mágoa, e apropriada ao caso: “é muito fácil abrir a mão e soltar uma pedra num poço; mas não é igualmente fácil retirá-la do fundo” (sic). A mágoa da tortura se transforma em calo seco. Calo no peito dos torturados. Calo dolorosamente sensibilizado na composição de relatos como este.

Recife, 06 de março de 2001

Relação de Anexos
01 – Desabafo/texto do requerente
02 - Texto de José Fortuna de Melo
03 - Comunicado de prisão em 31 de agosto de 1961 – SSP/PE
04 - Registro de Preso - SSP/PE - 1971
05 - Registro Geral na SSP/PE - 1971
06 - Fotografias individuais - 1971
07 - Fotografia coletiva na Penitenciária Professor Barreto Campelo/Itamaracá
08 - Informação No 182 da 2a Seção do IV Exército - 1971
09 - Informação No 49 da 2a Seção do IV Exército - 1971
10 - Ofício No 04/IPM do Comando da 2a Zona Aérea - 1971
11 - Ofício S/N do Comando da 2a Zona Aérea - 1971
12 - Ficha de Antecedentes da Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco - 1971
13 - Certidão da Auditoria da 7a C.J.M - 1979
14 - Interrogatório na Auditoria da 7a C.J.M - 1971
15 - Pronunciamento do Senador Marcos Freire Sobre o assassinato de Odijas Carvalho
16 - Documento dos presos políticos da Penitenciária Professor Barreto Campelo ao Secretario do Interior e Justiça do Estado em abril de 1974
17 - Relatório ao Conselho da OAB assinado pelos conselheiros Joaquim Correia e Everardo Luna, que visitaram a Penitenciária Professor Barreto Campelo - 1974
18 - Documento de Marcelo Mário de Melo e Luciano de Almeida à OAB/PE em 24 de julho de 1975
19 - Pronunciamento do deputado federal Jarbas Vasconcelos - 1975
20 - Pronunciamento do deputado federal Jarbas Vasconcelos - 1975
21 - Pronunciamento do deputado federal Jarbas Vasconcelos - 1975
22 - Documento dos presos políticos ao Auditor da 7a C.J.M em abril de 1976
23 - Documento dos presos políticos ao Ministro da Justiça em 24 de setembro de 1976
24 - Relato dos presos políticos sobre as dificuldades da vida carcerária, em maio de 1977
25 - Cartas das mães, irmãs e esposas de presos políticos à OAB/PE, em 30 de maio de 1977
26 - Apelo à Opinião Pública, em 10 de fevereiro de 1979
27 - Matéria sobre greve de fome – 30/11/1977
28 - Matéria sobre greve de fome de 1977
29 - Matéria sobre a greve de fome – JC, 03/12/1977
30 - Matéria sobre a greve de fome de 1978 – DP, 1o de março de 1978
31 - Matéria denunciando isolamento carcerário
32 - Matéria sobre a manutenção do Requerente na prisão – DP, 13/11/1978
33 - Carta da mãe do Requerente ao Juiz-Auditor da 7a C.J.M, em 05 de abril de 1979
34 - Matéria sobre resistência em libertar o Requerente
35 - Matéria sobre resistência em libertar o Requerente
36 - Matéria sobre resistência em libertar o Requerente


Documento
Original Message - From: mailto:jacarekan@digizap.com.br>: marcelo@fundaj.gov.br>Sent>: Tuesday, May 08, 2007 10:12 AM Subject: DOI COD em Natal
OLA mARCELO.
Este meu contato com vc. e de grand importancia para min pelo fato de participado de sua prisão aqui em NATAL na lagoa do bonfin em umachoupana as margen da lagoa. Eu fui a pessoa que observei a sua saida da choupana, era quatro hora da manhã quandovc,observou o movimento das tropa do exercito, neste momento eu ja tinha chegado ben antes no local e ja observava a sua saida, no momentoem que vc, correu para se proteger no mato eu estava em uma posição quetive a chance de ver sua movimentação e observá linha do orizonte a cima de sua cabeça, foi quando disparei uma rajada de metralhadoraque na hora sairam 15 tiros,foi quando vc, se rendeu soutou a arma, em seguida chegou o pelotão do erxercito ai foi quando começou as torturacontra vc,na epoca fizeram parte desta ação,policia federal erxercitomarinha e aeronautica nesta epoca eu era da marinha fazia parte docorpo de fuzileiros pretando serviço no doicod, tenho muita coisa paralhe contá devido o acontecido em função de na hora da tortura não ter participado fui retirado do doicod e me mandaram embora da marinha, hoje moro aqui em Natal estou com 60 anos. um abraço Alves







































































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